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segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Leandro Karnal e o Natal / no Estadão um ano atrás

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Mudaria o Natal ou mudei eu?

Festas tradicionais funcionam como marcos de memória
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Leandro Karnal
25 Dezembro 2016 | 02h00
Machado fez essa pergunta num soneto cometido próximo do fim da sua vida. Ele imagina um homem que decide registrar a data cristã do “berço do Nazareno” em versos. De repente, a personagem hesita e perde a inspiração. Diante da folha em branco, registra apenas: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. 
Machado tem o dom de desconstruir crenças. Os contos A Cartomante e Missa do Galo indicam esse esforço de retirar metafísica do mundo. Difícil saber de onde surgia esse sentimento no autor. Amava sua esposa Carolina, mas não teve filhos. Frequentava altas rodas e era mulato de origem humilde, situação que o perturbou algumas vezes. Era um gênio e estava cercado de burocratas repetitivos que fariam o conselheiro Acácio de Eça parecer um gênio. Acho que Machado não gostava do Natal. Eu, pelo contrário, adoro.

Festas tradicionais funcionam como marcos de memória. Sendo balizas, indicam nossa caminhada desde a última ocasião. Por vezes, a memória retorna às celebrações da infância e a recordação nos toma de assalto. Misturar uma discreta melancolia com entusiasmo de fim de ano chega a ser de bom-tom.  
É clichê dizer que o Natal é a festa da família. Quero ampliar a percepção. A festa dos dias 24 e 25 de dezembro é também da família atemporal. Convidamos pais e mães, avós e parentes. Os mortos todos se convidam para nossa casa. Não há como evitá-los; espíritos entram sempre. São como uma bruma densa que se imiscui sob a soleira de um castelo. O Natal é uma festa da memória de mortos e do contato com os vivos. Todas as casas ficam sempre lotadas, inclusive as casas que encerram apenas uma pessoa imersa no seu mundo.

Os jovens reclamam um pouco dos vivos presentes: há sempre um tio chato, pode existir uma cunhada excêntrica, é quase obrigatória a avó depressiva. Hoje, acho essa fauna (incluindo-me nela) parte da originalidade natalina.

Eu penso nos mortos que marcaram meus natais. Sinto falta deles. À medida que amadureço, dialogo mais com os ausentes, que, naturalmente, crescem a cada década. Nenhum jovem imagina o que eu sempre tenho presente: quem estará na festa do ano que vem? Mas a coluna não se pretende melancólica, nem fúnebre. Hoje é Natal. Volto ao leitmotiv: mudaria o Natal ou mudei eu? 
Eu tenho certeza absoluta de que mudei muito. Algumas coisas foram muito boas, outras nem tanto. A ideia de estar com a família sempre foi importante, mas a idade a tornou fundamental. Abasteço-me de quem eu sou, de raiz, de afeto, de um Leandro sem a cenografia do mundo. Volto ao espaço que me gerou, onde cresci, no qual aprendi quase tudo. Lá chorei e ri tantas vezes. Mudamos eu e o Natal e, por isso, preciso voltar a encontrá-lo sempre.
Lutei, ao longo de 2016, para controlar a alimentação. O Natal me convida a abrir mão do plano sempre fracassado da forma perfeita. Relaxe, sente-se e coma, insinua a mesa bem-posta. Hoje, você terá um dos maiores prazeres do mundo: compartilhar refeição com quem se ama. Fora Twiggy! Viva Pantagruel!

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O Ódio através da Retórica... / BBC / Leandro Karnal



Graças à internet, 'facilitamos muito para quem odeia', diz Leandro Karnal

  • Há 3 horas

Usuário na internetDireito de imagemTHINKSTOCK

Historiador e um dos palestrantes mais requisitados do país atualmente, Leandro Karnal diz que o discurso de ódio sempre existiu nas sociedades mas chama a atenção para a facilidade com que ele se propaga, hoje, graças à internet.
"Hoje é um clique e um site, com muitas imagens. Facilitamos muito para quem odeia. O ódio tem imenso poder retórico. Ele sempre existiu. Agora, existe este ódio prêt-à-porter, pronto, onde você se serve à la carte e pega seu prato preferido", disse ele à BBC Brasil.
Mas apesar da maior facilidade, hoje, de propagação do discurso de intolerância, o professor de história da Universidade Estadual de Campinas diz que "os mais sólidos preconceitos e violências humanos são muito anteriores à globalização".
Leia abaixo trechos da entrevista:
BBC Brasil - Uma das suas frases que mais viralizou e foi repetida em 2016 diz que "não existe país com governo corrupto e população honesta". O sr. acha que a população não se enxerga como responsável também pelo processo de corrupção?
Leandro KarnalCaracterística nossa e da humanidade: excluir da parte negativa da equação o pronome pessoal reto EU. Em nenhum momento quis dizer que todos nós, brasileiros, somos corruptos, mas que a corrupção é algo forte na política e que a política é uma das camadas constituidoras do todo social, como um mil-folhas.
A política não é descolada da sociedade, mas nasce e volta ao mundo que a gerou. Os políticos são eleitos por nós. Denúncias são feitas e o político é reeleito. Seria coisa de grotões?

Leandro KarnalDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionKarnal afirma que o 'ódio é o mais poderoso opiáceo já criado'

De forma alguma, eu me refiro também aos grandes centros urbanos. A expressão rouba mas faz não nasceu no sertão mas na maior e mais rica cidade do país. Meu alunos costumavam assinar lista de presença por colegas e, depois, ir a uma passeata contra corrupção na política.
A mudança não pode ser somente numa etapa do processo. Se você usa - a metáfora é importante - um lava-jato para limpar seu carro e a estrada continua sendo de terra batida, você precisará de uma nova lavagem todos os dias.
BBC Brasil - Mas de certa forma, responsabilizar a população pela corrupção da classe política pode parecer culpar a sociedade pelos erros cometidos pela elite governista, não?
Karnal - O que eu desejo sempre afirmar é que não existe uma elite separada do todo. Um político ladrão deve ser preso e devolver o que roubou. A culpa é dele e só dele. Mas, se queremos um novo país, devemos discutir na base, na educação, na família, na fila do aeroporto e em todos os campos para uma sociedade mais ética.
BBC Brasil - Nesse sentido, é a desigualdade mesmo nosso maior problema?
Karnal - A desigualdade é a base do problema e colabora para a má formação escolar. Uma sociedade que seja desigual já é um problema, mas uma que não educa nega a chance de corrigir a desigualdade. Como sempre, educação escolar básica é a chave da transformação.
Mudar isto muda tudo, como vimos no Japão e na Coreia do Sul após a guerra. Educação é músculo e osso, limpeza ética do Senado é maquiagem, mesmo quando necessária, como toda maquiagem, passageira.
BBC Brasil - Tivemos nesse fim de ano o episódio do ambulante morto a pancadas após defender uma transexual, também tivemos uma chacina em Campinas na qual o autor deixou uma carta criticando o feminismo. O que explica essa intolerância - racial, de gênero, de classe -, e de que forma ela pode ser combatida?
Karnal - Sempre existiu este ódio que flui por todos os lados. Não é fácil existir e acumular fracassos, dores, solidão, questões sexuais, desafetos e uma sensação de que a vida é injusta conosco. O mais fácil é a transposição para terceiros.
Um homem fracassa no seu projeto amoroso. O que é mais fácil? Culpar o feminismo ou a si? A resposta é fácil. Tenho certeza absoluta de que o autor do crime não era um leitor de Simone de Beauvoir ou Betty Friedan. Era um leitor de jargões, de frases feitas, de pensamento plástico e curto que se adaptava a sua dor.
Esses slogans são eficazes: "toda feminista precisa de um macho", "os gays estão dominando o mundo", "sem terra é tudo vagabundo". Curtos, cheios de bílis, carregados de dor, os slogans entram no raso córtex cerebral do que tem medo e serve como muleta eficaz.
No cérebro rarefeito a explicação surge como uma luz e dirige o ódio para fora. Se não houvesse feminismo, o assassino continuaria sendo o fracassado patético que sempre foi, mas agora ele sabe que seu fracasso nasceu das feministas e ele não tem culpa. Isto é o mais poderoso opiáceo já criado: o ódio.

Protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff 2016Direito de imagemBBC BRASIL
Image captionO mercado não distingue consumidores pela posição política, destaca o historiador

BBC Brasil - De que forma as redes sociais acabaram potencializando essa intolerância e esse discurso de ódio. Eles são reflexo da nossa sociedade ou acabam estimulando os comportamentos mais intolerantes e polarizados?
Karnal - Antes era preciso ler livros para criar estes ódios. Mesmo para um homem médio da década de 1930, ele precisava comprar o Mein Kampf de Hitler e percorrer suas páginas mal redigidas. Ao final, seus vagos temores antissemitas era embasados numa nova literatura com exemplos e que fazia sentido no seu universo. Mesmo assim, havia um custo: um livro.
Hoje é um clique e um site, com muitas imagens. Facilitamos muito para quem odeia. O ódio tem imenso poder retórico. Ele sempre existiu. Agora, existe este ódio prêt-à-porter, pronto, onde você se serve à la carte e pega seu prato preferido.
Exemplo? Uma pessoa me disse: "Quem descumpre a lei deveria ser fuzilado! Bandido deveria ser executado". Eu argumentei: "Pela sua lógica, descumprimento da lei merece pena capital. Como a lei brasileira proíbe a pena capital, você está defendo crime e incitação ao crime, na sua lógica, deveria ser punida com pena de morte."
Era uma maneira socrática de argumentar a contradição do enunciado. O caro leitor pode supor que a resposta do indivíduo não foi socrática nem platônica.

InternetDireito de imagemPA
Image captionKarnal destaca que ' a bolha informacional e seus respectivos algoritmos constituem uma zona de conforto para o navegador do cyberespaço'

BBC Brasil - Pensando num contexto geral, a globalização deu errado? Com esse discurso de fechar fronteiras, de medidas protecionistas...Estamos vivendo um retrocesso, um avanço ou uma estagnação?
Karnal - Não havia um mundo harmônico e feliz antes, e não existe agora. O que varia em história é como produzimos a dor. Nosso método atual mudou este método. Os mais sólidos preconceitos e violências humanos são muito anteriores à globalização.
BBC Brasil - Para muitos, 2016 foi um ano marcado pelo avanço de forças conservadoras. Em 2017, haverá eleições na França e na Alemanha, com os partidos de extrema-direita em ascensão. O que vem pela frente?
Karnal Difícil falar de futuro para um historiador, profissional do passado. A tendência é de uma onda conservadora por alguns anos em quase todos os lugares. Provavelmente, seguindo o que houve antes, depois de experimentar candidatos conservadores que prometem o paraíso e não vão conseguir, os eleitores estarão de novo inclinados a candidatos de outro perfil que oferecerão o paraíso.
As coisas mudam, mas não mudam porque o presidente usa topete ou é conservador. Presidente democratas estavam no poder com Kennedy e Johnson e a violência racial chegou ao ponto máximo. No período Obama, muitos policiais mataram muitos negros, tendo um presidente negro no poder. Então, de novo, não estamos abandonando um paraíso e ingressando no inferno.

Dicionário OxfordDireito de imagemDIVULGAÇÃO
Image captionO dicionário Oxford escolheu "pós verdade" como a palavra de 2016

BBC Brasil - O dicionário Oxford escolheu "pós-verdade" como palavra do ano de 2016. A definição é "circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência sobre a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais". O conceito é de que a verdade perdeu o valor, e acreditamos não nos fatos, mas no que queremos acreditar que é verdade. Qual sua avaliação sobre essa "nova era" e novo comportamento, que acaba reforçado pelas redes sociais?
Karnal - Sempre fomos estruturalmente mentirosos em todos os campos humanos. A mudança é que antes se mentia e se sabia a diferença entre mentira e verdade, hoje este campo foi esgarçado. O problema talvez seja de critério. Com a ascensão absoluta do indivíduo, o que ele considerar verdade será para ele.
Perdemos um pouco da sociologia da verdade, ou de um critério mais amplo de validação do verdadeiro. No século 18 era o Iluminismo: o método racional que tornava algo aceito como verdade. No 19, foi a ciência e o método empírico para distinguir falso de verdadeiro.
Hoje o critério é a vontade individual. "A água ferve a 100 graus centígrados ao nível do mar". Verdade? A resposta seria diferente no (século) 19 e hoje.
BBC Brasil - Queria falar um pouco sobre as bolhas informacionais. Muita gente se depara com elas nas redes sociais todos os dias - os algoritmos acabam reforçando opiniões, nos oferecendo mais daquilo que nós já acreditamos e isso favorece, de certa forma, as informações equivocadas, mentirosas. Qual sua avaliação sobre isso e sobre o impacto disso para a sociedade?
Karnal A bolha informacional e seus respectivos algoritmos constituem uma zona de conforto para o navegador do ciberespaço. Importante dizer: para o mercado, o consumidor conservador ou de esquerda compram da mesma forma, então o algoritmo informa qual o perfil do consumidor.
Quem deseja ler a biografia de Obama ou de Trump vai ao mesmo site. O que não mudou nos últimos séculos é que a verdade comercial é superior ao debate epistemológico de validação ou não do que é verdadeiro. Petralhas e coxinhas compram; isentões também. Resta a pergunta que não quer calar: qual a importância do debate sobre posição política sob este prisma? O que de fato importa para quem de fato manda no mundo?

domingo, 25 de dezembro de 2016

Leandro Karnal e o Natal / Estadão

Mudaria o Natal ou mudei eu?

Festas tradicionais funcionam como marcos de memória
Leandro Karnal
25 Dezembro 2016 | 02h00
Machado fez essa pergunta num soneto cometido próximo do fim da sua vida. Ele imagina um homem que decide registrar a data cristã do “berço do Nazareno” em versos. De repente, a personagem hesita e perde a inspiração. Diante da folha em branco, registra apenas: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”. 
Machado tem o dom de desconstruir crenças. Os contos A Cartomante e Missa do Galo indicam esse esforço de retirar metafísica do mundo. Difícil saber de onde surgia esse sentimento no autor. Amava sua esposa Carolina, mas não teve filhos. Frequentava altas rodas e era mulato de origem humilde, situação que o perturbou algumas vezes. Era um gênio e estava cercado de burocratas repetitivos que fariam o conselheiro Acácio de Eça parecer um gênio. Acho que Machado não gostava do Natal. Eu, pelo contrário, adoro.

Festas tradicionais funcionam como marcos de memória. Sendo balizas, indicam nossa caminhada desde a última ocasião. Por vezes, a memória retorna às celebrações da infância e a recordação nos toma de assalto. Misturar uma discreta melancolia com entusiasmo de fim de ano chega a ser de bom-tom.  
É clichê dizer que o Natal é a festa da família. Quero ampliar a percepção. A festa dos dias 24 e 25 de dezembro é também da família atemporal. Convidamos pais e mães, avós e parentes. Os mortos todos se convidam para nossa casa. Não há como evitá-los; espíritos entram sempre. São como uma bruma densa que se imiscui sob a soleira de um castelo. O Natal é uma festa da memória de mortos e do contato com os vivos. Todas as casas ficam sempre lotadas, inclusive as casas que encerram apenas uma pessoa imersa no seu mundo.

Os jovens reclamam um pouco dos vivos presentes: há sempre um tio chato, pode existir uma cunhada excêntrica, é quase obrigatória a avó depressiva. Hoje, acho essa fauna (incluindo-me nela) parte da originalidade natalina.

Eu penso nos mortos que marcaram meus natais. Sinto falta deles. À medida que amadureço, dialogo mais com os ausentes, que, naturalmente, crescem a cada década. Nenhum jovem imagina o que eu sempre tenho presente: quem estará na festa do ano que vem? Mas a coluna não se pretende melancólica, nem fúnebre. Hoje é Natal. Volto ao leitmotiv: mudaria o Natal ou mudei eu? 
Eu tenho certeza absoluta de que mudei muito. Algumas coisas foram muito boas, outras nem tanto. A ideia de estar com a família sempre foi importante, mas a idade a tornou fundamental. Abasteço-me de quem eu sou, de raiz, de afeto, de um Leandro sem a cenografia do mundo. Volto ao espaço que me gerou, onde cresci, no qual aprendi quase tudo. Lá chorei e ri tantas vezes. Mudamos eu e o Natal e, por isso, preciso voltar a encontrá-lo sempre.
Lutei, ao longo de 2016, para controlar a alimentação. O Natal me convida a abrir mão do plano sempre fracassado da forma perfeita. Relaxe, sente-se e coma, insinua a mesa bem-posta. Hoje, você terá um dos maiores prazeres do mundo: compartilhar refeição com quem se ama. Fora Twiggy! Viva Pantagruel!

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Depois de palavras, insultos chegou a hora da verdade...

 Trumpillary vai à luta

Semelhanças profundas entre os dois candidatos são camufladas por um tom bélico de campanha que não reflete a realidade 
  08 Novembro 2016 | 05h00


 Leandro Karnal 


 O vice-presidente dos Estados Unidos da América, Richard Nixon, vivia à sombra do popular Eisenhower. Os republicanos tinham assumido em 1953, após 20 anos de domínio democrata. O fim da Guerra da Coreia (1950-1953) iniciava uma diminuição da Guerra Fria e havia um clima de otimismo econômico no ar. O californiano Nixon não era o carisma em pessoa, mas a prosperidade da década de 50 não exigia pessoas carismáticas. Nixon foi enviado para um tour diplomático pela América do Sul, em abril de 1958. A recepção no Uruguai foi morna. Em Lima, no Peru, os estudantes o hostilizaram de forma drástica, tanto na rua quanto no hotel. Em Caracas, na Venezuela, a agressão quase virou uma tragédia. Uma multidão raivosa tentou linchar o vice-presidente. A atitude de Nixon seria louvada como corajosa pela imprensa dos EUA.
 Na América Latina, o antiamericanismo parecia ter aumentado de forma exponencial. O episódio ocorreu há quase 60 anos. A Aliança para o Progresso que Kennedy lançou em discurso aos embaixadores latinos, em 1961, apresentou efeitos limitados. A fratura representada pelas imagens do Vietnã seria duradoura. “Yankees, go home” virou mantra para parte dos pensadores latino-americanos. Intelectuais mais conservadores diziam o contrário. Roberto Campos, no Brasil, era célebre pela americanofilia. O livro Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano aprofundou essa linha afirmando que pior do que ser explorado pelos EUA era não ser explorado. Isso significava que, para os autores como Alvaro Vargas Llosa, países mais ligados à economia estadunidense prosperavam, e os menos ligados ao mundo do dólar, definhavam.
 Parte da tradição simpática aos EUA reapareceu agora, nessa época de disputa presidencial. Um grupo decidiu, em plena Avenida Paulista, fazer uma manifestação pró-Trump. Num domingo de outubro de 2016, alguns brasileiros seguraram cartazes em inglês atacando Hillary e apoiando o candidato republicano. Fica a pergunta: por que pessoas que não fazem nenhuma diferença no processo eleitoral dos EUA necessitam expressar sua opinião? Provavelmente a resposta poderia ser dada tanto pelos estudantes que agrediram Nixon como pelos que manifestaram apoio a Trump na Paulista. 

Repercussão.

 A eleição no grande irmão do Norte abala mais consciências do que votações em outros lugares. Críticos e defensores, pensadores de direita e de esquerda: todos, de alguma forma, consideram os EUA símbolo do que amam ou odeiam. O capitalismo dos EUA ofende quem é inimigo desse sistema e entusiasma aqueles que o defendem. Os EUA sempre constituem o chamado tipo ideal, o protótipo do que deve ser evitado ou seguido. Por um lado, se os EUA apoiam a candidata democrata, todas as posições que, no Brasil são construídas em torno de Hillary (empoderamento feminino, por exemplo) passam a ser mais válidas. Por outro lado, se o apoio a Trump cresce, posições contra aumento do Estado e críticas ao esquerdismo ganham reforço no Brasil. O modelo do Norte servirá de guia e cânon. No fundo, tanto inimigos como aliados, prestam essa homenagem: não importa o sucesso ou fracasso do capitalismo em Luxemburgo, mas, apenas, no seu epicentro nervoso, os EUA. 

A retórica de Trump encarna o político independente que desafia chefões tradicionais do jogo de Washington. Políticos tradicionais são odiados nos EUA e no Brasil. Habilmente, Trump conseguiu parecer um homem de ação e de liberdade de expressão, num mundo onde cada um só fala aquilo que agrada a todos. O republicano usa sua habilidade teatral para reforçar como ele é o verdadeiro americano, aquele que acredita no esforço individual e é livre. Trump é o porto onde nacionalistas, machistas, racistas e homofóbicos podem ancorar seu navio com segurança. 
A retórica de Hillary, da mesma forma, tentou convencer a todos de que ela seria a candidata crítica e alternativa, a primeira mulher a postular a chefia da nação com chances reais de vencer, a ponderada em detrimento do intempestivo adversário. Hillary parece o porto onde feministas, cosmopolitas e liberais podem ancorar seu navio com segurança. 
Quando eu vejo essa polarização, não comum nas campanhas dos EUA, penso seriamente num hipotético polonês, em 1945, tendo de tomar partido entre os nazistas que arrasaram o país (e estavam sendo expulsos) e seus libertadores soviéticos. A pergunta sempre difícil: você prefere nazistas ou soviéticos? 

Agressividade. 

Tanto nos EUA como aqui, as pessoas destemperadas, inclinadas aos palavrões, sem freios politicamente corretos, parecem estar em ascensão. A capacidade de insultar foi associada a uma veia de autenticidade. Ulisses Guimarães, criticando a campanha de Collor (um Trump avant la lettre), teria dito que, em época de campanha, abraçaria até estuprador. É exatamente essa prática do político comendo com felicidade o pastel engordurado na feira e abraçando todos que irrita o eleitor médio. Jânio Quadros conseguiu vender, na sua Vila Maria e no país todo, o marketing da antipolítica. 
A política representativa, no Brasil e nos EUA, está chegando a um paradoxo cada vez mais complexo. O aumento do narcisismo do indivíduo exige que o candidato tenha um perfil que seria a representação do próprio eleitor melhorado. Só assim ele “me representa”, usando a próclise que se consagrou no nosso mundo. Cada vez mais, o candidato deve encarnar meu eu melhorado e seu adversário passa a ser meu perfeito outro piorado. Trump acusou Obama de não ter nascido nos EUA. Foi uma calúnia política e, diante de documentos claros, ele teve de retroceder. 
A mentira política faz parte do jogo, mas, no mundo da internet, ela é usada como ferramenta básica. Um dos manifestantes da paulista usava o cartaz “Obama e Hillary criaram o ISIS” (o Estado Islâmico). É uma calúnia política, mas, atualmente, a verdade não é mais fundamental. A chave é usar os recursos da detração para atingir o outro, o inimigo, aquele que representa o oposto do meu mundo e, por consequência, não me representa. Assim, distantes no espaço, os manifestantes da Paulista e os eleitores dos EUA mostram o verdadeiro candidato de todos: o Narciso. Minha opinião deve ser manifestada, mesmo que ninguém a tenha pedido, mesmo que ninguém a respeite, mesmo que não faça a menor diferença porque isso, em última análise, é liberdade de expressão.

 Semelhanças. 

As diferenças entre republicanos e democratas são mais de slogans do que de práticas concretas. Hillary e Trump são membros de uma elite branca e bem sucedida, uma é rica, o outro, milionário. Ambos estão convictos de valores bem mais próximos do que gostariam de reconhecer. Mas, para fins de campanha, tornam-se polos de dois mundos incomunicáveis e mutuamente excludentes. Você imagina um homem sem controle tendo o poder de acionar o maior arsenal atômico do planeta? Um pesadelo! Você imagina uma mulher que usa servidores não seguros para trocar e-mails portadores de segredos de Estado? 

Um desastre.

 Trump é o modelo do americano xenófobo e bem sucedido. Hillary é a mulher política que ignorou a traição do marido e agora recebe apoio do casal Obama, exatamente o mesmo Obama que ela atacou de forma visceral quando disputou com ele a candidatura democrata. Um que erra por falar demais; outra que muda o discurso de acordo com sua ambição do momento.
 Democracia é o melhor dos sistemas, sempre. Mas há uma conclusão incômoda. Quem manda nos Estados Unidos e no Brasil não está concorrendo e nem precisa do seu voto. Quem tem o poder real, nunca se candidata e nós, como uma plateia de musical da Broadway, batemos palmas para X ou Y, porque isso nos transmite o conforto de que nossa aprovação é determinante para o espetáculo. Orgulhoso, eu ligo para o SAC da grande empresa e sou atendido por alguém que não decide nada e me dá razão. Quem manda, de verdade, está inacessível. Desligo o telefone com sensação de poder. Seria a consulta popular a maneira mais sofisticada de perguntar minha opinião sobre quem não vai, de fato, mandar? Assim, aqueles sobre os quais eu nunca fui consultado podem continuar, democraticamente, fazendo o que querem? Marionete com ilusão de liberdade seria mais feliz? Nosso/a candidato/a é Trumpillary! Só com Trumpillary seremos felizes.