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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

E por falar em silêncio... / Pó de Lua


Olha pra Rua de Sempre de Novo.


O casal.

Meu caderninho e eu. Foto de Pri.


Hoje eu vou escrever um texto sem muitas preocupações com poesia e forma. Bem simplesmente, é só uma coisa que vi.
Estou passando alguns meses estudando criatividade aqui em Buenos Aires. A informação é apenas para ajudar no contexto do que eu vou contar. Dois meses em uma cidade cheia de vida e gente como esta, te dão a chance de viver determinadas coisas com muita calma. Com muita pressa também. Mas vou contar uma das coisas da calma.
Semana passada, minha dupla de criação, Pri, e eu, decidimos dar uma volta no Jardim Botânico. Fomos e cada uma levou seu objeto de ar pra respirar. Ela, a sua pasta de desenho. Eu, meu caderninho. Queria ver se teria uma chance de parar pra escrever num parque. Dessas coisas que morro de vontade de fazer todos os dias no Recife, mas a vida de trabalho toma todos os seus goles de tempo e você ainda fica morrendo de sede.
Andamos, rimos, turistamos (o lugar é lindo) e enfim paramos em um banco enorme. Nem Pri nem eu somos exatamente pequenas e nos espalhamos bem nele. Não demorou muito e ela mergulhou eu suas ilustrações fantásticas. Não demorou muito e eu deitei cansada sem pensar em nada, louca pra ter aquela pose maravilhosa de gente escrevendo no parque, mas minha velhice aguda não permite. Acho que não nasci pra isso. Acabo sempre escrevendo no escuro, antes de dormir. Zero glamour. Deitei, morri, voltei. Pri continuava nadando em seu desenho. Acabei me rendendo ao meu caderninho guardado e quase não sabia o que fazer. Eu teria horas só com ele e tinha mil coisas a dizer. Morar longe te enche de pensamentos porque você fica vazio. Vazio das coisas que normalmente preenchem seu tempo e sua mente. Periga você esvaziar a alma. Mas isso eu não consigo, é a matéria fundamental pra o meu saco vazio parar em pé. Me esforço muito pra dar de comer a ela.
Enfim me rendi e escrevi.Sem muito sucesso. Umas poucas linhas, umas coisinhas aqui, umas sinceridades ali. Já já elas aparecem por aqui. E eu já estava mesmo desistindo de escrever quando olhei de lado e os vi.
Sentados em um desses bancos enormes, só os dois, se encontrava um casal de meia idade. O que me chamou mesmo a atenção era que o banco não estava virado para a beleza do parque, pra onde Pri e eu havíamos fugido. Ele ficava perto da grade, que dava pra avenida movimentada e estava virado para ela. Os dois estavam ali sentados em silêncio, meio abraçados olhando apenas a rua. Comecei a esperar que se cansassem, que começassem a conversar, mas não. Eles passaram muito tempo olhando simplesmente a rua, sentados um ao lado do outro. A essa altura meu caderninho já estava me cutucando, pedindo atenção. Ignorei. Realmente estava agora com o casal, meio que impressionada, meio que curiosa, achando a cena estranha. Na verdade eles me lembraram duas pessoas assistindo televisão. A posição, o silêncio, o foco. Mas era só a rua o entretenimento.
Eu mesma já estava com os fones de ouvido faz tempo. Achava um insulto aquele barulho de ônibus mais alto que o silêncio do jardim. Eles passaram ainda o que me pareceram horas ali parados diante da sua gigante tela de cinema. Estrelando: o cotidiano.
O casal já tinha seus cabelos brancos. Acho que entendiam bem de cotidiano. O que fazia então que eles parassem para contemplá-lo? Nós, que vivemos presos ao cotidiano, às nossas pressas e barulhos, paramos para contemplar um jardim bonito, uma beleza qualquer, uma tela de TV que nos leve pra longe. Mas parar para admirar durante horas o nosso corriqueiro, o de sempre, como se fosse algo extraordinário que merece atenção?
Pensei então que eles talvez não se importassem com o que estava acontecendo na rua. O que valia era estar ali sentado ao lado dele e ele ao lado dela. Me perguntei de novo se isso também não já deveria ser corriqueiro. Um casal com seus cabelos brancos já teve anos e anos para sentar lado a lado e estavam ali como quem degusta daquele momento em silêncio.
De repente ele puxa algum assunto. Ela responde algo, mas sem desviar muito os olhos da rua, como quem não quer perder um detalhe do filme. Ele ri. Ela ri. Eles conversam. Os dois voltam os olhos para a rua. E eu ri também.
A rotina admirando o corriqueiro, que ria do de sempre que, por sua vez, estava de olhos fixos no trivial e todos ali, sentados,  pareciam um triângulo amoroso: o banco, o casal, a rua. Todos apaixonados entre si. Me vi admirando a capacidade daquele triângulo de parar para olhar a rotina, para sentir aquela pele de sempre, a piada de todos os dias, a buzina de ontem.
Simplesmente porque a vida está ali, se apaixonando de novo por ela, escondendo seus amores de quem passa com pressa.

Clarice.
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