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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Uma delicada crônica de Arthur Dapieve: "As casas de Freud" / Globo

Arthur Dapieve
O colunista escreve às sextas-feiras

As casas de Freud

Compra-se um boneco de pelúcia de ‘Herr Doktor’ para pôr na prateleira com os livros de psicanálise

O divã de Freud
Julian Barnes produziu o seu primeiro grande livro, “O papagaio de Flaubert”, a partir da cômica e intrigante constatação de que dois diferentes museus dedicados ao autor francês exibiam ao mesmo tempo o papagaio empalhado que o teria inspirado enquanto escrevia a novela “Um coração singelo”. Posto que é vedado aos psitacídeos o dom da ubiquidade, o protagonista de Barnes tentava descobrir qual dos bichos — ou se nenhum deles — era o autêntico, tecendo, no caminho, considerações sobre vida e obra.
Parecerá menos insólito que duas instituições separadas por cerca de 1.400 quilômetros orgulhem-se de ser “a casa de Freud”. Afinal, é notório que o pensador austríaco morou na Berggasse 19, em Viena, de 1891 a 1938, ano em que uma operação humanitária multinacional o resgatou do país que a Alemanha nazista havia acabado de anexar ao Terceiro Reich; e morou no número 20 da Maresfield Gardens, em Londres, de 1938 a 1939. No entanto, de certa forma, um endereço é mais autêntico que o outro.
A questão, claro, é: qual dos dois é o mais autêntico? O apartamento duplo no nono distrito de Viena, no qual a família viveu durante quase meio século, apartamento esvaziado de gentes e de coisas quando da fuga para Londres? Ou a confortável casa em Hampstead, na qual o grande homem passou seu último ano de vida e para a qual foi levada toda a mobília do consultório vienense e toda a sua coleção de antiguidades orientais? Como qualquer tópico relacionado à psicanálise, este é passível de cismas.
A vizinhança londrina foi escolhida a dedo para dar tranquilidade ao fim da vida de Freud, que havia muito sofria de câncer na mandíbula. As amplas casas de tijolos vermelhos exalam a solidez da sede do império onde, dizia-se, o sol nunca se punha (e ainda assim esteve para ser invadida por Hitler, embora Freud não vivesse para passar por mais esta aflição). Suas coisas, inclusive o célebre divã, estão lá, como se lá sempre tivessem estado. A casa tornou-se museu depois da morte de sua caçula e pupila, Anna, em 1982. É uma visita educativa, tocante e simpática. À saída, compra-se um boneco de pelúcia de Herr Doktor para pôr na prateleira com os livros de psicanálise ou um mousepad reproduzindo o não menos célebre tapete persa que fica sobre o divã.
Nos apartamentos da Berggasse 19, nada ficou para trás, só as paredes e o aterrador peso da História. Os poucos objetos pessoais hoje expostos foram mandados de Londres por Anna, quando o Sigmund Freud Museum abriu as portas, em 1971. A exposição de fotos é confusa, não há legendas e nem todas têm número correspondente no audioguia em inglês (só a aquisição a posteriori do catálogo preenche as lacunas). O local de trabalho e estudo de Freud por tanto tempo é reconstituído graças à ampliação de fotos feitas para o posteridade por Edmund Engelman poucos dias antes da fuga, em 1938. Logo depois, como afronta, bandeiras com a suástica nazista cobririam parte da fachada do prédio branco, situado num bairro universitário e imponentemente burguês.
A troca do endereço vienense pelo endereço londrino não foi, como se pode imaginar, indolor. Freud se queixaria a um amigo que o pior do exílio era ter de pensar e se expressar num idioma distinto daquele em que havia pensado e se expressado até então. A mudança, porém, era uma questão de sobrevivência. Quatro das suas cinco irmãs morreram em campos de extermínio. Uma em Theresienstadt, outra em Auschwitz, duas em Treblinka. Tendo 82 anos quando da fuga, ele não poderia esperar outro fim se ficasse. Além de ser judeu, pensava pensamentos perigosos para tiranos.
Eu já conhecia Maresfield Gardens. Este ano peregrinei à Berggasse. Apesar dos vazios eloquentes nos apartamentos, há um rito que faz a subida evocar uma consulta com Herr Doktor: toca-se uma campainha com seu nome na porta do prédio, sobe-se a escada e toca-se outra campainha na porta da residência. Lá dentro, o trajeto nos leva sucessivamente à sala de espera (quanta ansiedade não terá sido vertida aqui!), ao consultório (quantas neuroses não terão se manifestado aqui!) e ao escritório de Freud (quantas ideias não terão surgido aqui, contemplando-se pela janela a pequena fonte no pátio interno!). Estar in loco emocionou-me mais do que o ótimo museu londrino.
Curioso este impulso que nos faz acorrer a casas onde viveram seres humanos interessantes, Freud, Mozart, Handel, Balzac, Victor Hugo, Keats, Strindberg, Anne Frank, Santos Dumont, Zweig. Ele tanto tem um pouco de parapsicologia — é como se acreditássemos que os mortos deixaram energias sobre o assoalho, energias que os mais sensíveis dentre nós seriam capazes de sentir ou absorver — quanto tem um pouco de física — é como se calculássemos que em algum outro multiverso os mortos continuam vivos, aqui, mas não exatamente agora, como se Freud permanecesse escrevendo “O mal-estar na civilização” enquanto, em 2014, ocupo o mesmo espaço, ao lado da janela.