segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Está difícil viver em paz...pois nos roubaram o sono, a certeza, o sorriso


ELIANE BRUM - 10/12/2012 10h50 - Atualizado em 10/12/2012 10h55
TAMANHO DO TEXTO

Sensação de insegurança?

O que acontece no nosso lado de dentro quando a violência passa a ocupar espaços cada vez mais largos da vida cotidiana

ELIANE BRUM

                                         Nesta primeira segunda-feira de dezembro, percebi com muita clareza que a violência não era mais uma exceção no meu cotidiano, mas algo que atravessava todo o meu dia com uma banalidade persistente e insidiosa. Tenho uma razoável folha corrida como vítima de assaltos e outros crimes ao longo da vida, mas soube de repente que um limite havia sido transposto em algum momento deste ano. Trago essa reflexão para cá, porque a realidade me mostra que não sou a única a ter os dias contaminados nos pequenos gestos.
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)Percebi de repente que a violência não era mais algo sobre o qual eu pensava ou escrevia – mas algo que havia ganhado um tamanho preocupante não só fora, mas dentro de mim. Eu estava havia minutos demais pesquisando onde levaria uma amiga de infância para jantar, não com base na qualidade ou no preço, mas porque temia expô-la ao risco de um assalto. Quase todos os bares e restaurantes que eu costumava frequentar sofreram arrastões neste ano, até mesmo um japonês que era apenas uma porta, um balcão e umas poucas mesas, levado com muito esforço e lucro escasso pelos proprietários. Surpreendi a mim mesma tentando fazer um cálculo bastante absurdo sobre quais deles teriam mais chance de sofrer um segundo ataque naquela segunda-feira. O que eu estou fazendo?, me questionei a certa altura, ao não me reconhecer nesse ato. E escolhi o que gosto mais.  
Marquei cedo – 19h15 – para sair de casa com claridade, graças ao horário de verão, e voltar quando ainda tivesse algum movimento nas ruas. Coloquei na bolsa apenas o suficiente para pagar o táxi e um cartão para pagar o restaurante. Na hora de sair de casa, meu marido ponderou: “Mas se você levar só o dinheiro do táxi, em caso de assalto os caras vão se irritar e você pode levar um tiro”. Pensei um pouco. Talvez ele tivesse razão. E, ao concordar, de novo me senti esquisita. Peguei o dinheiro que tinha tirado do banco para fazer um pagamento no dia seguinte e coloquei na bolsa, como redução de risco. 
Meu marido carrega na carteira todas as senhas do banco, em código. Quando sofreu um sequestro relâmpago, anos atrás, ele foi levado a um caixa eletrônico e teve a sorte de se lembrar da senha, mesmo com uma arma na cabeça. Como conseguiu lembrar, os assaltantes ficaram com o carro, um Gol, mas deixaram-no ir embora. O episódio deixou nele a marca de um pânico retroativo: e se não tivesse lembrado, o assaltante teria apertado o gatilho? Desde então, ele guarda todas as senhas na carteira.  
Sempre diz que devo fazer o mesmo, mas eu me recuso. E, neste início de noite, tivemos mais uma vez essa discussão. Saí de casa ainda com sol, mas com a sensação de uma sombra no meu lado de dentro. Não tenho carro. Ando de táxi, metrô ou ônibus, conforme o horário e a circunstância. Caminhei um pouco e comecei a descer a Teodoro Sampaio, em Pinheiros, um bairro de classe média de São Paulo. Tentava encontrar um táxi, já esquecida de meus temores. Depois de alguns minutos, um carro parou ao meu lado. O motorista perguntou se eu ia longe. Supus que ele queria saber se a corrida valeria a pena antes de decidir se me levaria, o que me deixou irritada no primeiro instante. Em seguida, porém, descobri que o motivo era outro.  
O taxista explicou que na zona dele tinha toque de recolher – e que ele já estava passando da hora de chegar em casa. Como eu ia a um bairro próximo, na direção da casa dele, aceitou me levar. Entrei no carro de um homem que precisava fazer mais corridas para pagar as contas, mas preferia não arriscar a vida. “Eles me conhecem, moro ali a vida toda, mas acho melhor não facilitar”, explicou. Eram mais ou menos 19h30. Eu tinha atrasado porque minha amiga ligara avisando que estava parada no trânsito. Se eu tivesse saído no horário que pretendia, possivelmente teria testemunhado o espancamento de André Baliera, homossexual agredido por dois homens no cruzamento da Teodoro Sampaio com a Henrique Schaumann, ao voltar para casa depois do trabalho.


Cheguei ao restaurante no mesmo horário que a minha amiga. Ela tem uma loja no interior do Rio Grande do Sul e estava em São Paulo para comprar roupas para o Natal. Costuma vir de ônibus, numa espécie de excursão montada para lojistas por empresas de turismo. São cerca de 17 horas de viagem, 34 ida e volta, uma jornada iniciada no domingo por gente que trabalha duro de segunda a sexta no balcão. Mas naquele dia minha amiga tinha vindo parte de ônibus de linha, parte de avião, por medo dos assaltos que tinham se tornado cada vez mais frequentes. Ela tinha feito a escolha certa.

 Quando me encontrou, já sabia que três ônibus tinham sido assaltados na noite anterior. Vestidos de policiais, os ladrões entraram nos ônibus, mandaram os passageiros tirar as roupas, que jogaram na estrada, e entregar os celulares. Depois, foram todos trancados no bagageiro. Minha amiga, como eu, se surpreendia nos últimos tempos com cálculos bizarros antes de cada viagem de trabalho. No caso dela, lembrar de vestir uma lingerie nov a, preparando-se para a hipótese de ser trancada com outras pessoas num bagageiro, só de calcinha e sutiã, totalmente humilhada e exposta.
Na manhã seguinte, terça, fui à minha aula de pilates logo cedo. Ao chegar à escola, percebi que uma das colegas estava abatida, com olheiras fundas. Estranhei a princípio, porque desde que a conheço ela me chama a atenção pelo bom humor e o riso fácil, mesmo às 7h da manhã. Lembrei-me então de que sua casa tinha sido assaltada pouco tempo atrás, num dia de semana, no início da tarde. Os bandidos entraram com metralhadoras e uma granada. Com seu vizinho, foi ainda pior: ele foi obrigado a segurar a granada durante todo o assalto. Mas só na aula seguinte, dias depois, eu tive coragem de perguntar como ela se sentia. Ela explicou que, desde o assalto, não consegue dormir à noite, escuta barulho por todo canto. A outra colega – só somos três por aula – contou que havia passado por um arrastão, quando voltava de Santos, na rodovia Imigrantes, em outubro. Em novembro, seu filho fazia o mesmo percurso quando, de cima de um viaduto, jogaram uma pedra no carro. O vidro frontal foi estilhaçado, mas ele seguiu em frente e escapou.  
Quando voltava a pé para casa depois da aula, encontrei uma amiga que chegava para o trabalho. “Continua o toque de recolher no teu bairro?”, perguntei. E só ao perguntar percebi o quanto a pergunta deveria soar absurda – e o problema é que não soava, nem para mim, nem para ela. O toque de recolher continuava, ela respondeu. Havia começado semanas antes, desde a execução de três homens – dois por terem estuprado uma garota, um por ter roubado um tênis. Há bastante tempo essa mulher não sai mais à noite, nem deixa o filho adolescente sair. O último toque de recolher só aumentou restrições que ela já tinha incorporado na sua vida. Mesmo assim, ela me garante que está tudo bem: “Eu cresci com essas pessoas, elas não vão fazer nada comigo. É só ficar em casa à noite e não correr o risco de ver o que não devia. Eu recolho até a cachorra, para ela não ficar latindo no portão, e fico tranquila, bem quietinha dentro da minha casa”.  
Conheço essa mulher há 12 anos e sei que ela já perdeu um sobrinho morto pela polícia, numa execução que ficou para sempre impune e mal explicada. Como o taxista da véspera, ela vive na parte da cidade em que falta tudo, especialmente justiça, na qual a população há muito está espremida entre a facção criminosa e uma polícia violenta. Aquilo que contamina minha vida só recentemente, assinala a dela há muito mais tempo. Assim como o filho dela tem várias vezes mais chance de ser assassinado do que a minha jamais teve. Agora, ela me assegura, já se acostumou a viver na luz do sol e me dou conta de que não percebe mais que lhe roubaram as noites.  
Essa série de pequenos episódios e diálogos casuais que acabei de relatar aconteceu no espaço de 12 horas, uma noite no meio, na qual acordei várias vezes em sobressalto. A violência tinha me alcançado em todos os meus contatos com o mundo de fora e também com o de dentro. Em todos os meus encontros, ela havia sido o tema principal. Me sentei diante do computador para trabalhar e me descobri triste. Por que estou triste?, ralhei comigo mesma. Não havia motivo aparente para eu estar triste. Mas como não? 
Percebi então que tudo havia se tornado tão banal, que eu nem mais registrava como uma perda. É perigoso quando assimilamos aquilo que não pode ser assimilado, a ponto de deixar de estranhar. Como imaginar que essa violência, que nos alcança de várias maneiras e também pelos pequenos gestos, não nos muda? Como supor que não há efeito sobre a vida? Talvez possa parecer a alguns que eu esteja falando o óbvio, mas o que tento dizer é que a violência nos afeta com uma intensidade muito maior do que pode nos parecer a princípio, mesmo quando não somos nós as vítimas diretas de um ato violento. 
O que tento perceber aqui é o efeito sobre a vida cotidiana daquilo que autoridades e pesquisadores têm chamado de “sensação de insegurança”. E que sempre me pareceu uma expressão bastante curiosa. Como mencionei no início do texto, eu tenho uma experiência razoável como vítima de crimes – só de assaltos foram cinco, fora e dentro de casa, com e sem agressão física. Carrego a marca de todas as violências que vivi. Mas há uma diferença para o que experimento agora – e foi isso que só percebi uma semana atrás.
Até então, eu percebia a violência como exceção. Havia uma quebra da lei e também uma quebra da rotina. A cada episódio, familiares e amigos se mobilizavam, eu recebia atenção e ajuda, e principalmente o reconhecimento de que algo importante havia acontecido. Algo tinha se quebrado, eu teria de lidar com as sequelas, principalmente as psicológicas, mas aquela não era a minha vida. Eu sabia que, com mais ou menos tempo, o tecido dos meus dias seria recomposto. Agora, não. Como mostra esse relato de 12 horas, a violência tornou-se a linha que costura o meu cotidiano.  
Ao perceber isso, passei o restante da semana conversando com pessoas, tanto dos bairros mais nobres quanto das periferias, para saber o que sentiam, como decodificavam essa sensação e como lidavam com ela. Os relatos me surpreenderam pela intensidade das pequenas grandes mudanças. Como uma família que está matriculando a menina mais nova numa escola militar porque na pública ela é discriminada por ser filha de um soldado da PM, uma decisão privada para uma guerra pública e não declarada, na qual, como sempre, os mais frágeis caem primeiro. Minha ideia inicial era trazer os depoimentos para esta coluna, mas acabei concluindo que, desta vez, era mais significativo contar o que eu tinha vivido nestas primeiras 12 horas, quando a violência ainda não era o meu foco, quando eu nem pensava em procurar por ela.  
Naquelas 12 horas, percebi que em algum momento eu havia deixado de perceber pequenas mudanças que outros haviam feito na minha vida e algumas que eu mesma tinha feito, todas elas ocorridas neste ano: que passo por grades e gaiolas para entrar e sair do meu prédio; que os entregadores de qualquer coisa foram proibidos de entrar no edifício, o que faz com que trabalhadores sejam tratados como se bandidos fossem por decisão de reuniões de condomínio onde sou sempre voto vencido; que eu coloco a bolsa no chão ao sentar num táxi para que não seja vista e me sobressalto a cada moto com duas pessoas que passa ao meu lado; que eu deixei de levar o notebook para todos os lugares que ia, por medo de que ele seja roubado; que a cada notícia de arrastão eu me sinto aliviada porque poderia estar naquele bar ou restaurante e não estava; que eu ando me achando privilegiada porque a última vez em que fui vítima de violência (com direito a tiros e carro incendiado) foi há três anos, enquanto ao meu redor as pessoas lidam com traumas contados por semanas, dias e horas; que eu me sinto quase culpada porque o meu toque de recolher é só introjetado e ainda pode ser violado, enquanto o da maioria é determinado por uma lei fora da lei, o que faz toda a diferença.  
Nos últimos meses, autoridades têm repetido que a “sensação de insegurança” é maior do que as estatísticas da criminalidade. Como se a “sensação” fosse menos real do que os números – que, é preciso lembrar, no caso de São Paulo têm se mostrado assombrosos. Ou que as estatísticas teriam mais valor do que a decodificação da experiência, aqui traduzida em sensação. Ou ainda, como se “os números” fossem mais legítimos para aferir a realidade do que a experiência de quem a vive. E, no limite, ainda que isso apareça travestido de eufemismos, a população estaria vivendo uma espécie de delírio coletivo – ou fantasia compartilhada – de que vive numa cidade mais violenta, num estado mais violento – e num país mais violento – do que efetivamente é. 
Ainda que aceitássemos por um momento essa “sensação de insegurança” que não corresponderia aos números/fatos, poderíamos nos perguntar o que é afinal a violência. Viver com “sensação de insegurança” já é uma tremenda violência. E maior ainda quando o que a população sente, experimenta, vivencia não é reconhecido pelas autoridades, sejam elas de que instância forem. Porque a “sensação de insegurança” é justamente o que alinhava o cotidiano, o que se enfia nas frestas dos dias, o que nos faz vítimas não na exceção, mas na regra. 
A violência é também tentar escapar da violência. E a tragédia é também a banalidade desse ato contínuo. É quando deixamos de perceber as paredes do labirinto. E restamos com esse mal estar difuso, essa tristeza sem nome que nos corrói por dentro enquanto as horas escorrem pelos muros. 
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.

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